terça-feira, 16 de julho de 2019

MENSAGEM DA XXV ASSEMBLEIA GERAL ELETIVA 2019 DA CONFERENCIA DOS RELIGIOSOS DO BRASIL




Reunidas e reunidos pelo Espírito do Senhor como Vida Religiosa do Brasil na XXV Assembleia Geral Eletiva, de 10 a 14 de julho de 2019, em Brasília-DF, nós, em torno de  450 participantes, vindas/os de vários  recantos do Brasil e de outros países, vivemos a força revigoradora  da Vida Religiosa Consagrada como espaço de discernimento  e vida.

O tema escolhido para fundamentar a caminhada do próximo triênio foi “Consagradas e Consagrados em Missão” e o lema “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5), os quais nos impulsionam,  como Vida Religiosa Consagrada, a estarmos sempre itinerantes, no seguimento a Jesus Cristo.

Muito nos alegrou a presença da Presidente da Conferência Latino Americana e Caribenha de Religiosos (CLAR), Irmã Gloria Liliana Echeverri, a qual nos interpelou inspirando-se no Papa Francisco, para a vivência dos valores do Reino, a sermos especialistas em comunhão, sair do ninho que nos contém, cuidar da formação integral, enriquecer a Igreja com nossos carismas e confiar em Quem nos conduz. 
A atual conjuntura sócio-política-econômica nos mostra o fortalecimento de políticas neoliberais com mecanismos financeiros que retiram direitos e agravam a situação dos vulneráveis, submetendo-os a um cenário de escassez. É nossa missão suscitar esperança, resistência, em busca da verdade e da paz.
Manifestamos nosso apoio incondicional ao Papa Francisco e às suas propostas. Ele tem nos interpelado a um êxodo para a fronteira das necessidades humanas atuais. Insiste, entre outros aspectos, na sinodalidade como próprio ser da Igreja, na missionariedade, simplicidade, pobreza, misericórdia, pastores com cheiro de ovelhas e ecologia integral.
Como horizonte inspirador, nós, consagradas e consagrados em missão, movidos por uma mística profético-sapiencial e articulados institucionalmente, procuramos estar presentes onde a vida está ameaçada, responderaos desafios de cada tempo, tecendo relações humanizadorase interculturais, ouvindo o clamor dos pobres e da terra, para que o vinho novo do Reino anime a festa da vida.

Para o próximo triênio, assumimos as seguintes prioridades: cultivar a mística profético-sapiencial; ouvir o clamor dos pobres  e da terra; fomentar a intercongregacionalidade, a interculturalidade e a partilha dos carismas com leigas/os; promover relações humanizadoras e atenção diferenciada à cada geração na VRC.
Fazemos nossas as  palavras da Irmã Maria Inês Vieira Ribeiro, após a eleição: “eu desejo neste triênio que nos dediquemos mais às questões da Amazônia, da identidade da VRC, dos presbíteros religiosos, dos abusos sexuais na Igreja, do tráfico humano e do engajamento nas Políticas Públicas, em estarmos com os pobres e dos pequenos, para que sejamos uma vida consagrada masculina e feminina de acordo com o Espírito de Jesus”.

A exemplo de Maria, Mãe e  Discípula de Jesus Cristo, pedimos ao Espírito que dirija nossos passos e nos faça testemunhas do seu amor e da esperança.  

Brasília- DF, 14 de julho de 2019

Missa final de encerramento da 25ª AGE











HORIZONTE INSPIRADOR DA CLAR

FAÇAM TUDO O QUE ELE DISSER. JÁ É A HORA.
ENCONTRO COM A VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA DO BRASIL

                                                             Hna. Gloria Liliana Franco Echeverri, odn

Agradeço a Deus por esta possibilidade de estar na terra dos homens e das mulheres que, com o testemunho de sua vida, de seu profetismo, animaram nossa formação. Desejo fazer memoria especial de Dom Pedro Casaldaliga.

Tenho a sensação de que a Vida Religiosa Consagrada se encontra justamente neste momento da noite em que tudo está em absoluto silêncio, como esperando que ressoa a Palavra, capaz de fecundar, de conferir sentido e missão, de assinalar o rumo e dar alegría ao ser.

São João da Cruz escreveu, no século XVI, o poema “A noite escura da alma”, um dos mais significativos e sonoros da história universal.

Em 1889, Vicent van Gogh encontrava-se recolhido no manicômio de Saint-Rémy, quando pintou a noite estrelada, uma das imagens mais conhecidas e valorizadas na cultura moderna.

São dois exemplos que nos revelam a fecundidade da noite.

A vida Religiosa Consagrada, imersa na espessura da noite, pode expressar-se em toda sua beleza, sua plenitude e sua autenticidade. Hoje é mais frágil, menor, está mais ferida e limitada, tem menos trincheiras e seguranças e, portanto, está mais apta para pousar o coração no fundamental, para que, com humilde ousadia, possa recriar-se no Deus que faz novas todas as coisas.
O papa Francisco, consagrado por vocação e convicção, sabe bem que nosso momento é fecundo e que, nesta noite prolongada, somente a centralidade em Jesus Cristo devolverá à Vida Religiosa Consagrada sua identidade mística, profética e missionária.
O Papa tem falado à Vida Religiosa Consagrada com o calor do “amigo no Senhor”, com a bondade do Pastor, com a claridade do mestre. Suas palavras nos devolvem a origem e nos assinalam o norte. Ajudam-nos a manter a memória e nos tocam no profundo  do coração para curá-lo e para enviarnos em condição de discípulos.

Suas palavras encarnam um itinerário que nos ressoa:

Ser valores do Reino:

Sejam testemunhas de um modo distinto de fazer, de atuar, de viver. Sejam valores do Reino, encarnados, homens e mulheres capazes de despertar o mundo e iluminar o futuro. O testemunho carismático deve ser realista e incluir também o fato de apresentar-se como testemunhas pecadoras. Reconhecer nossa debilidade e admitir que somos pecadores nos faz bem a todos.
(82 A.G. 2013)

Faz alguns dias, escutei Carlos Eduardo Correa, o provincial dos jesuítas na Colômbia, dizer: “a maneira que Jesus tem de nos salvar, de nos levantar de nossa condição de pecadores, é nos convidar a trabalhar por seu Reino”.
No gênesis de nossa vocação está essa experiência profunda e vital que temos de um Deus que se aproxima de nossa realidade e que, conhecendo o que somos, nos chama além da geografía de nossa cotidianidade.
O olhar de Deus pousou amoroso sobre nossa condição humana, frágil, pecadora, e essa experiência pessoal de ter sido reconstruídos pelo amor misericordioso, constitui-se em um imperativo que nos lança pelas partes do Reino, conscientes de que nos envia o sussurro da voz de Deus, e nos compete “despertar o mundo”, animar essa vigilância ousada e serena  de quem, em condição de sentinela, sabe-se corresponsável por seu entorno e chamado a contribuir para a transformação da história, avivando sua identidade profética e missionária.
Um modo distinto de ser, de atuar, de viver somente surge da arte da relação, somente se cultiva no encontro, somente se valida  na profundidade de uma mensagem que consolida e configura nossa identidade. Daí a importância de rezar, de permitir que ressoe em nós a Palavra, de nos aproximar do mistério e contemplar os acontecimentos com olhar crente e esperançoso, de fazer do discernimento uma atitude vital.
Qualquer relacionamento que tenha seu fundamento no amor e seja enriquecido no encontro, faz a alegria crescer. Palavras do Papa::

Ser testemunhas da alegria. Que entre nós não vejam rostos tristes, pessoas descontentes, porque um seguimento triste é um triste seguimento... A vida consagrada não cresce quando organizamos belas campanhas vocacionais, mas quando os jovens que nos conhecem ... nos vêem felizes homens e mulheres. Nem sua eficácia apostólica depende da eficiência e poder de seus meios. É a nossa vida que deve falar, uma vida em que a alegria e a beleza de viver o Evangelho e seguir a Cristo é revelada ". (Testemunhas da Alegria C.A. 2014)

Ser especialistas em comunhão:

Um matiz específico de nossa consagração é a vivência comunitária. No carisma, que a cada um de nós foi concedido, há uma tendência ao que se constrói com outros, em complementaridade e corresponsabilidade, e isso exige abertura à diversidade, capacidade de juntar ritmos, de combinar línguas, culturas, sensibilidades e visões. Supõe um novo olhar contemplativo que nos possibilite descobrir o bem, a verdade e a beleza que habitam em cada ser humano. Pedro Casaldáliga o expressa simplesmente em um de seus poemas:
“O difícil outro,
O difícil eu,
O duro nós da comunhão”.

E o papa Francisco, seguramente, a partir de sua própria experiência, nos diz: “A vida de fraternidade pode ser muito difícil, porém é muito importante, é um testemunho. A falta de fraternidade impede o camino. Se uma pessoa não consegue viver a fraternidade, não pode viver na vida religiosa”.
.
Às vezes, há uma tendência para um individualismo, que muitas vezes é uma fuga da fraternidade, e a vida de fraternidade, se é mal vivida, não ajuda a crescer.

 Os conflitos comunitarios são inevitáveis: existem e devem existir, e o conflito deve ser assumido, não deve ser ignorado… Há que aceitá-lo, fazê-lo próprio, acariciá-lo, sofrê-lo, superá-lo e seguir em frente. Ante o conflito com um Irmão, com uma Irmã, devemos rezar e pedir a graça da ternura (82 A.G. 2013).

Somente a ternura tem força para corrigir erros, para deixar cair aquilo que desgasta energia e tira alegria, para compreender e pôr-se a partir das entranhas no lugar do outro. Somente o exercício cotidiano da ternura nos fará mais humanos e refletirá com maior nitidez o rosto de Deus entre nós.
Em um mundo de polarizações e individualismos, a comunhão é o maior testemunho que podemos dar a nossos cidadãos. A utopia da fraternidade deve ser para nós horizonte de sentido.

Sois chamados a ser especialistas em comunhão. A comunhão se pratica antes de tudo nas respectivas comunidades do Instituto. A crítica, a fofoca, a inveja, os ciúmes, os antagonismos, não têm direito de viver em nossas casas. O caminho da caridade que se abre ante nós é quase infinito, pois trata-se de buscar a acolhida e a atenção recíproca, de praticar a comunhão de bens espirituais e materiais, a correção fraterna, o respeito para com os mais fracos… É a “mística de viver juntos” que faz de nossa vida uma “santa peregrinação”. Também devemos nos perguntar sobre a relação entre pessoas de diferentes culturas, tendo em conta que nossas comunidades se fazem cada vez mais interculturais (Testemunhas da Alegria C.A. 2014).

Este peregrinar em alegria estamos chamados a fazê-lo também intercongregacionalmente. Fazê-lo em um diálogo carismático que torna possível que, à riqueza da intuição de cada fundador, se adicionem outras sensibilidades que na diversidade de contextos geográficos e históricos também se tornaram dom para a Igreja e dom da Igreja para todos.
O testemunho da amizade entre religiosos de diversas congregações, os esforços partilhados  por levar adiante projetos comuns, a busca incansável de respostas aos desafíos do momento histórico é já evidencia de que Deus está entre nós para  fazer-nos um. O horizonte é caminhar como irmãos e irmãs, em gratuidade, acolhendo nossas diferenças, potenciando o melhor de cada um, construindo um projeto comum, entoando a melodia da fraternidade.

Sair do ninho que nos contém: 

O discípulo missionário, tão próprio da nossa identidade e tão recorrente nas reflexões da teologia atual, faz-se nas expressões do papa Francisco, o itinerário que corresponde  hoje à vida consagrada: “A vida consagrada é profecia. Deus nos pede sair do ninho que nos contém e ser enviados às fronteiras do mundo, evitando a tentação de domesticá-las. A perspectiva do mundo é diferente se a vemos a partir do centro, e isto nos obriga a repensar continuamente nossa vida religiosa” (82 A.G. 2013).

Somos chamados a transpor fronteiras para contemplar com os olhos de Deus a realidade de cada povo e as situações em que urge uma mão estendida, um coração capaz de compaixão. Fomos convocados a nos lançar “mar adentro”, tendendo ao profundo, a navegar sem medo, a lançar com constância e radicalidade as redes até que a barca de nosso apostolado derrame fecundidade.
O Papa insiste convidando-nos a transcender toda carapaça que nos fecha em nós mesmos: “Não recue sobre si mesmo, não deixe que as pequenas lutas de casa o sufoquem, não caia prisioneiro de seus problemas… Encontrarás a vida dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando” (Testemunhas da Alegria C.A. 2014).
Abrir os olhos para detectar os lugares nos quais a vida continua sendo ameaçada de morte e ser portadores de uma palavra e um testemunho que permitam optar pela justiça, motivar o perdão, defender as vítimas, repartir com generosidade o pão e as possibilidades, expressar o amor com gestos de ternura.
Viver em estado de êxodo e de serviço, de itinerância e peregrinação. Fazer-nos eco da realidade, comprometer-nos, tomar posição e assegurar que todas nossas energías sejam investidas no trabalho pelo Reino, a partir dos valores e critérios do Evangelho. Não cair no engano da autorreferencialidade, do consumo, do individualismo e das teorías, dos modos e das posições que nos dividem, desintegram ou acomodam.
Nosso compromisso profético é urgente, porém também há pressa que abramos nosso coração aos mais pobres, para que sua voz, sua realidade ressoe e nos desafie, nos confronte, nos incomode, nos converta.
Devemos pronunciar palavras que devolvam aos mais fracos sua porção de esperança, de alegria e de dignidade. E oxalá permitamos que sua vida, a dos mais pobres, seja a palavra que Deus usa para nos convidar a viver com mais coerência e radicalidade nossa vocação de consagrados e consagradas.

Cuidar da formação integral:

O discipulado é dom e aprendizagem, graça e conquista. E o Papa sabe bem que nosso mundo se transforma vertiginosamente e que requer que sejamos especialistas em humanização, líderes credíveis na vivência da comunhão, competentes na arte de anunciar Jesus e sua Boa Nova: “A formação se baseia em quatro palavras fundamentais: formação espiritual, intelectual, comunitária e apostólica. O objetivo é formar religiosos que tenham um coraçaõ terno e não ácido como o vinagre” (82 A.G. 2013).
As palavras do Papa apontam que façamos do coração o sujeito da formação, e que todo esforço formativo seja integral e nos conduza ao “mais” da entrega e da missão. “Formar para ser testemunhas da ressurreição, dos valores do Evangelho, para que formem e guiem o povo. Não estamos buscando gestores, administradores, mas pais, irmãos, companheiros de caminho” (82 A.G. 2013).
A meta é a formação de TESTEMUNHAS, de homens e mulheres capazes de dar conta de seu amor, aptos para dar a vida no ordinário e para oferecê-la livremente no extraordinário.

Enriquecer a Igreja com nossos carismas:

O padre Elías Royón, S.J., em seu artigo A graça do ano da Vida Consagrada, assinala:
:
 …a vida consagrada tem seu presente e seu futuro ancorado também na vida dos que nos precederam, que viveram com sonho e paixão o chamado do Senhor a servi-lo em uma situação e em um tempo concreto. De maneira especial, na memória daqueles homens e mulheres carismáticos a quem o Espírito agraciou com o dom de uma  nova familia religiosa, para responder a umas necessidades da Igreja e da sociedade de sua época.

A Teologia da Vida Consagrada tem perante si o desafio de escrutinar na fonte, na origem dos carismas fundacionais, para desentranhar o potencial de originalidade e validade que os habita e que os faz partinentes e necessários em cada momento da história.
O carisma, que nos foi dado gratuitamente e em abundância, compromete-nos a mudar em coerência e autenticidade, a viver na verdade que liberta, a pronunciar palavras que estimulam e animam, a estar junto de quem busca justiça e paz, a comungar com os que creem e a partilhar com aqueles que lhes custa crer. O carisma que nos dá identidade alcança sua plenitude quando se encontra com outros carismas e juntos evidenciam o mais típico e original do Reino: a mesa comum, onde há lugar para todos, a mesa que nos faz Igreja, povo de Deus.

Assim contribui o Papa:

 Ninguém contrói o futuro isolando-se, nem somente com suas próprias forças, mas reconhecendo-se na verdade de uma comunhão que sempre se abre ao encontro, ao diálogo, à escuta, à ajuda mútua e nos preserva da doença da autorreferencialidade.
A vida consagrada está chamada a buscar uma sincera sinergia entre todas as vocações na Igreja, começando com os presbíteros e os leigos, assim como a fomentar a espiritualidade da comunhão, primeiro em seu interior e, depois, na própria comunidade esclesial e além de seus confins (Testemunhas da Alegria C.A.)

Confiar em quem nos conduz:

Constante é a noite e, nela, a certeza da esperança. Com beleza literária se expressa no livro As Mil e Uma Noites: “…somente permanece a esperança, a esperarei até que saia o sol”. Temos que ser como Moisés, que se manteve em pé,como se visse o invisível (Heb 11,27). Era também a experiência de Paulo: a noite vai passando, o dia logo vem…(Rm 13,12).
Deus não para de criar e recriar, também o faz na noite, e nessa convicção tem que ser forte a nossa esperança.

 O carisma é criativo, busca sempre caminhos novos… A profecia consiste em reforçar o institucional, quer dizer, o carisma, na vida consagrada, e não confundir isto com a obra apostólica. O primeira fica, a segunda passa. O carisma fica porque é forte (82 A.G. 2013).

 Não devemos ter medo de abandonar os “odres velhos”. Quer dizer, de renovar os costumes e as estruturas que, na vida da Igreja e, portanto, também na vida consagrada, reconhecemos que já não respondem ao que Deus nos pede hoje para estender seu Reino no mundo: as estruturas que nos dão falsa proteção e que condicionam o dinamismo da caridade; os costumes que nos separam do rebanho ao qual somos enviados e nos impedem de escutar o grito de quem espera a Boa Notícia de Jesus Cristo (A.P. CIVCSVA, 2014)

A esperança deve renascer e, com isso, novas respostas serão feitas, aquelas que nos permitem repensar-nos ao ritmo do Espírito e da graça.
É outra lógica, a do Espírito, a que nos leva sempre além do que somos capazes de calcular ou supor. A que nos situa no lugar do pequeno e nos faz valorizar o gratuito, celebrar a amizade e cuidar do comunitário. A que nos lança por caminhos desconhecidos e requer que nos atrevamos à confiança do Reino, da mão de Deus. É a lógica de quem confía.
E nesta lógica surge, fruto da construção coletiva, o Horizonte Inspirador da CLAR. Dividido em três partes:

I.                   CONTEXTO

O chamado a ver, escutar e deixar-nos “afetar” pela realidade. A escutar Jesus nesta hora, e com Ele e como Ele, caminhar para  um novo modo de ser Igreja, que se deixa transformar para servir como discípula, profeta e missionária.
Coloquemos o olhar na realidade social, reconhecendo o complexo deste momento da América Latina, devido a fenômenos como a corrupção, o fluxo migratório, a pobreza, o tráfico humano…
Na realidade eclesial: neste momento em que nos dói e nos indigna, nosso pecado, os reiterativos escândalos por abusos sexuais, de poder e consciência. Este momento em que constatamos divisões no interior da Igreja e, nos lábios do Papa Francisco, um chamado constante à conversão, a superar clericalismos.
Na realidade da Vida Religiosa, chamada com urgência a recriar-se com a força do Espírito, a não perder a esperança, a não se curvar aos números, aos indicadores.
Como Vida Consagrada Latino-americana e Caribenha, renovamos a opão pelas/os excluídas/os do nosso tempo, manifestando que queremos caminhar come elas/es.

II.                MARCO BÍBLICO

 Julgar, discernir, sentipensar.  E inspirados nas seis talhas das Bodas de Caná, seis talhas de interpretação

1.      Vivir com sentido a própria vocação:

Recuperar a centralidade evangélica, viver com radicalidade e renovado entusiasmo nossa consagração para ser testemunhas autênticas no  seguimento de Jesus.

Voltar ao essencial do seguimento de Jesus, a partir da vivência de uma espiritualidade integrada para que, com base nessa experiência, dinamizemos a reconfiguração de nossas instituições.

Humanizar os processos comunitários e a formação de maneira intergeracional, procurando que as Novas Gerações desenvolvam sua vitalidade e ofereçam seu dom, para ser profecia de alegria e esperança.

Assumir a formação como dinâmica permanente, que nos dispõe para viver integralmente em condição de testemunhas, com consciência da vocação mística, profética e missionária da Vida Religiosa Consagrada.

Continuar buscando uma nova forma de ser e realizar a missão em comunhão com os leigos e leigas, tornando-nos com eles família carismática.

Acompanhar a vida das famílias em seu compromisso e missão educadora para que cultivem em seu interior, valores, sonhos, experiências sociais e espirituais que potencializem as relações em todas as direções.

2.      Aprofundar a espiritualidade trinitária:

Continuar, a partir do Evangelho, em dinâmica de itinerância e saída que contribua para a nossa humanização e daqueles/as a quem servimos em todos os povos e culturas.

Reconhecer as diversas identidades com uma disposição ativa a estreitar relações interpessoais dialógicas e compassivas.

Assumir um estilo de vida pobre que confronte a cultura do consumo, do descarte e da exclusão.

Reconciliar permanentemente todas as nossas relações, para fazer evidente no mundo a manifestação própria de Deus.

3.      Para um novo modo de ser Igreja:

Aprofundar o caminho da conversão pessoal e comunitária, especialmente no relacional, pastoral e ecológico.

Recriar nosso modo de ser Igreja a partir da Sinodalidade, na dinâmica de discernimento, contribuindo ativamente nas decisões e na animação das estruturas eclesiais.

Assumir as preocupações e buscas da Igreja e nos dispor para implementar as propostas que nos animem a evangelizar de maneira nova.

Impulsionar uma experiência litúrgica viva, encarnada e inculturada.

Promover e formar novas lideranças, especialmente da mulher e dos leigos e leigas como cidadãos plenos do corpo eclesial.

4.      Renovar a opção pelos excluídos a partir de um olhar contemplativo da realidade:

Reforçar o compromisso social, optando cada vez mais por uma evangelização vivida entre os mais pobres, que renove a esperança.

Favorecer a formação política e a participação em instâncias públicas, para que o direito individual e coletivo seja respeitado.

Impulsionar a busca da dignidade humana  e o bem comum ao lado das pessoas marginalizadas.

Continuar desvendando e assumindo a dimensão místico-profética da Vida Religiosa Consagrada, em resposta ao clamor de Deus nas diferentes pessoas e contextos.

Favorecer um novo olhar contemplativo, capaz de reconhecer as ameaças que os atuais sistemas políticos e econômicos repressentam para o Planeta e possibilitem alianças, participação e compromisso com os defensores da vida, da paz, da dignidade humana e do bem comum.

5.      Favorecer a ética do encontro e do cuidado:

Continuar tecendo redes e relações inter-eclesiais, congregacionais, internacionais, culturais e geracionais, que explicitem a comunhão e apoiem a solidaridade.

Promover uma cultura do encontro e do bom tratamento que, a partir do estilo relacional de Jesus, dê primazia ao humano.

Aprofundar-se na problemática da cultura do abuso dentro e fora da Igreja, para suscitar consciência, conversão e novas práticas relacionais.

Gerar espaços gratuitos pessoais e  comunitários que favoreçam a relação na reciprocidade, o olhar positivo da vida, o apoio mútuo, e continuar decididamente a festa a serviço da vida.

6.      Optar pela ecologia integral:

Promover o reconhecimento da sacralidade do criação  e a interdependência mútua entre todas as criaturas.

Favorecer a harmonía pessoal, social e ecológica em defesa da vida, dos povos e das culturas.

Aprofundar a conversão ecológica que nos reconcilie, fortaleça  na comunhão e que nos coloque respeitosamente ante os ecossistemas naturais, estimulando o cuidado da vida da casa comum.

Conscientizar de maneira urgente o compromisso da Vida Religiosa Consagrada de fazer presença na Amazônia, deixando-nos inspirar por sua riqueza cultural e espiritual.

Como membros ativos da REPAM, conhecedoras/es dos riscos que corre esta região do Planeta, as ameaças que pesam sobre ela, os desafios que apresenta, somamos na busca de alternativas e ações para sua preservação e proteção.

Encher as talhas de Palavra, Vida e Profecia… tudo um itinerário de oções proféticas que nos animam a viver mais radicalmente nossa vocação.

III. PROJETAR, ATUAR, FLUIR

Programas, projetos, estruturas que favorecem a vida e servir de maneira nova.

Todos somos chamados a fazer vida este Horizonte Inspirador da CLAR, que não seja letra morta, que se traduza em vida, em compromisso, em opções concretas em cada um dos lugares onde se desenvolve nossa vocação.
E termino com Casaldaliga em meus lábios, reconhecendo que:
É tarde,
porém é nossa hora.

É tarde,
porém é todo o tempo que temos à mão
para fazer o futuro.

É tarde,
porém é madrugada
se insistirmos um pouco.
Obrigado!!!


Fr. Moacir Casagrande, OFMcap “FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER” (Jo 2,5)


“FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER” (Jo 2,5):
A palavra de Maria: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). Esta é a última palavra pronunciada por Maria, segundo os evangelistas. A primeira, dirigida ao anjo Gabriel, diante da absoluta novidade do anúncio é “Como isso vai acontecer se não conheço homem” (Lc 1,34)?  Lá ela faz uma pergunta, aqui ela dá uma instrução. Entre uma e outra, Maria teve a oportunidade de percorrer um longo caminho. Pelo menos 30 anos (Lc 3,23) separam a anunciação feita pelo anjo Gabriel a Maria, do início da missão de Jesus, nas bodas de Caná. Tendo ele iniciado a missão, segundo o evangelista João, Maria se calou, mas acompanhou os passos do Filho até o pé da cruz.
A orientação de Maria tem antecedentes na história da salvação. Quando no Egito, o povo sofrendo de fome foi ao faraó pedir socorro. Este lhe disse: “Ide a José e fazei o que ele vos disser” (Gn 41,55).  O povo foi e José socorreu. Quando no deserto, Moisés reuniu o povo para transmitir a Palavra de Deus, o povo respondeu: “Faremos tudo o que disse o Senhor” (Ex 19,8).
Agora, aqui, na festa da aliança (bodas), em Caná da Galileia, é Maria, que depois de ter avisado seu filho sobre a falta de vinho diz aos serventes: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). Assim, na história da salvação, vamos de José no Egito para Jesus em Caná. Do pão nosso de cada dia para o vinho da alegria.
O foco de nossa abordagem é o protagonismo corresponsável. Onde quer que a pessoa esteja, seja qual for o nível de participação oferecido ou permitido, ela precisa protagonizar o bem comum. Qualquer dificuldade surgida tem a ver com todos. A solução não está em fazer o que nos cabe, mas em dar o melhor de cada um para o bem de todos. Não basta constatar o problema, é necessário buscar a solução.
O texto. Observando, atentamente, vemos que a narrativa está composta em duas partes. A primeira (Jo 2,1-5), com destaque para a mãe de Jesus como protagonista, mencionada três vezes (2,1.3.5). A segunda (Jo 2,6-12), tendo como figura central o chefe dos serventes, todo atrapalhado, também mencionado três vezes (2,8.9.9). A mãe de Jesus é contraposta ao chefe dos serventes. Ela está lá como convidada, mas se antecipa na percepção da situação e da carência, leva a questão a Jesus e aponta Jesus aos serventes. Agora, para continuarem fieis a missão de servir, os serventes precisam obedecer a Jesus.
A mudança nas relações soluciona o problema. O chefe dos serventes, por sua vez, é surpreendido por não estar aberto aos sinais. O foco dele é o costume. Está fixado nele (cf. Jo 2,10). O novo não vem com coisas novas, mas com novas relações, novas atitudes. São elas que fazem a diferença. A solução não está na adequação de Deus à nós, mas na nossa adequação à Ele.
As falas. Nosso texto, embora narre uma festa de bodas, consta da fala de apenas três pessoas. Duas delas foram para lá na condição de convidadas. Maria é a primeira. Ela tem duas falas; uma para o Filho: “eles não têm vinho” (Jo 2,3), outra para os serventes: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5).
Jesus é o segundo. Ele tem três falas, uma respondendo à mãe: “Mulher, que há entre mim e ti? A minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4), e duas ordenando os servos: “Enchei as talhas de água” (Jo 2,7). “Tirai agora e levai ao mestre-sala” (Jo 2,8). Está aí atitude que o servidor de Jesus precisa exercitar: Obedecer.
A última fala é a do mestre-sala, que provocado pelos serventes, se dá conta de que algo escapou de seu controle (cf. Jo 2,10). Alguém inverteu a ordem do serviço. A tradição, costume, foi rompida. Ele, que na lógica, devia ser o primeiro, chega por último. Sua fala mostra o porquê. A falta de vinho ele não percebeu, mas a quebra do costume sim. Na tradição as bodas são organizadas e dirigidas por homens. Em Caná não é diferente. Mas é uma mulher que atua a realização de um final feliz.
O tempo. A narrativa das bodas não é um texto solto, está ligada às anteriores, desde o testemunho do Batista, diante das autoridades enviadas de Jerusalém para junto dele (cf. Jo 1,19-28). O testemunho dele constitui o primeiro dia da apresentação do Messias. Estamos agora no terceiro dia depois do quarto dia que, segundo Mateos e Barreto (1989 p. 127), corresponde ao sexto dia da criação (Gn 1,26-31). Lá em Gênesis, Deus criou o homem e a mulher entregando a eles todas as criaturas. Aqui em Caná, Jesus inicia seu ministério numa festa de aliança de um homem e uma mulher, oferecendo o vinho que garante a festa permanente.
Em João, o sexto dia é do recomeço ou do resgate da criação, que acontece exatamente no ponto em que se havia desvirtuado, isto é, na relação de aliança do homem com a mulher e de ambos com Deus (cf. Gn 3,8-13). Lá, no sexto dia Deus criou o homem e a mulher (Gn 1,26-31). Aqui, no sexto dia, Jesus garante o sentido da relação dos nubentes, simbolizado no vinho novo, de modo que o pecado não prevaleça sobre ela e o amor seja permanente. A expressão “terceiro dia”, remete, porém, a uma senha: “a ressurreição de Jesus”, com ela é inaugurada a nova humanidade.
O evento. Festa de bodas tem a ver com aliança. Não necessariamente conforme a compreensão messiânica de aliança. Nesse tempo, as bodas celebravam um contrato em que prevalecia a vontade do pai e do noivo. Em Caná, porém, a ação da mulher prevalece. A intenção das bodas era cumprir o mandamento de Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gn 1,28). Mas o modo de cumprir o mandato não priorizava o amor de ambas as partes. Prevalece a obrigação e não a gratuidade.
Possivelmente por isso, segundo João, Jesus começa sua missão numa festa de bodas. Estabelece aí a “Nova Aliança” selada no amor, com o protagonismo de sua própria mãe, a qual representa o povo da espera. Isso pode explicar porque Jesus não a chama de mãe, mas de “mulher”. A mãe dele, ali, se torna símbolo de todo o povo que espera a ação do Messias. O livro do Apocalipse retoma o tema da aliança em forma de bodas (21,2.9-10), como pleno cumprimento dos desígnios de Deus sobre a criação.
O local: Uma pequena vila, sem maior expressão, situada entre Nazaré e Cafarnaum. Caná fica a 15 km de Nazaré a 31 km de Cafarnaum. Da capital, Jerusalém até Caná são cerca de 230 km. Caná vem da raiz do verbo comprar, adquirir. Ali se adquire, se resgata o sentido que o criador quis dar às bodas, não contrato, mas enlace, aliança nupcial.
Não importa tanto saber se a vila era significativa ou não, importa a narrativa do que ali aconteceu. A festa de bodas em Caná segue o ritual de todos os outros lugares. Pela descrição interna da (des)organização, a festa não era tão simples assim. Era estruturada, cada qual na sua função. Na estrutura da festa está a explicação da carência. Maria interfere e, com Jesus, faz a diferença.
As presenças. “E a mãe de Jesus estava lá. Jesus e os discípulos também foram convidados” (Jo 2,1b-2). A narrativa não se interessa pelo nome, da mãe, mas pela relação com Jesus, tanto no início (2,1) quanto no final (2,12). Pela sequência da narrativa parece que a mãe de Jesus estava lá na condição de convidada. Sua atitude, porém, mostra bem mais do que isso.
Ali fica evidente o papel de Maria como mediadora. Só não vê quem não quer. Ela movimenta toda a narrativa. Para Jesus ela diz: “Eles não têm vinho” (Jo 2,3). Para os serventes ela diz: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). Mesmo depois da resposta estranha de seu Filho, ela continua firme na missão, que é de fazer convergir os servos e o Senhor, em favor dos convidados da festa, e por extensão, de toda a humanidade, de todas criaturas.
O problema. “Eles não têm vinho”. Onde Maria viu que está faltando vinho se eles estão ainda com vinho na mesa? Eles não têm vinho no depósito, mas o que isso tem a ver, se o responsável por servir constata que os participantes da festa já estão embriagados (cf. Jo 2,10). Que diferença faz? A diferença é que a festa vai acabar antes do tempo e vai acabar por negligencia. Não é o administrador do vinho, mas o noivo, que decide a hora da festa acabar.  Acabar a festa por falta de vinho é fracasso. O próprio Jesus diz à mãe “e o que nós temos a ver com isso? ” Eles estão aí apenas como convidados. Aqui começa o discernimento entre o lado bom e o lado ruim da tradição e dos costumes. Por que impor limites a quem pode dar mais? Parecem estar programados para o mínimo.
A falta do vinho é problema dos administradores da festa. Maria, porém, não vai a eles.  Ela vai a quem realmente pode fazer algo, não fica falando ou reclamando para as paredes ou botando a boca no trombone. Na Festa, além de Maria existem pessoas que podem reverter a situação, a principal é Jesus, mas há pessoas que estão aí contratadas para servir. Servir é sua missão ou profissão? Depende do mestre que seguem. É para elas que Maria se dirige. Ao filho (mestre) ela diz: “eles não têm vinho”. Aos serventes ela diz: “fazei tudo o que ele vos disser”. Por que faltou vinho? Esta não é hora de buscar culpados, mas de criar solução. O tempo urge.
Em nossas congregações há um clamor, uma murmuração que se recusa a calar: Não temos mais vocações. A Vida Consagrada não tem mais sentido. O animador vocacional não faz nada. Hoje ninguém mais quer esse tipo de vida. Estamos defasados mesmo. Melhor que morramos e nasça outra coisa mais significativa. Pensando assim, não se vai a Jesus e nem aos serventes.
Nossa falta de iniciativa não será por conta de nossa embriagues? Embriagues de nossas verdades, de falta de tempo, de atividades assoberbadas...? O que nos causa tanta desorientação ou falta de responsabilidade? Percebemos a falta do vinho e ficamos procurando explicação em vez de criar solução. De quem estamos esperando solução?
Nível de carência. A julgar pela resposta do gerente a falta do vinho não é grave, pois, qualquer vinho a partir daquele momento é suficiente. Os que estão festejando já não tem condições de discernir. Não será exatamente este o ponto em que nos encontramos? Gente embriagada, no meio da festa, que perde o sentido da própria festa e se faz dependente de qualquer coisa que venha a ser oferecida. Não vamos, não sabemos e, talvez, nem queiramos ir à fonte. Tornamo-nos consumidores em vez de criadores. Não damos a vida para criar nova vida.
Jesus não veio para dar-nos uma vida mais o menos. Ele veio para que tenhamos vida em abundância (cf Jo 10,10). Ele veio para que produzamos frutos em abundância (Jo 15,7-8.16). A abundância que ele traz não é para perder o sentido (embriagar), mas para ampliar, transbordar o sentido, criando e alimentando a vida. Esta é a que acontece em Caná quando os servos cumprem a ordem de Jesus.
A constatação é da mãe de Jesus que se antecipa evitando o vexame. Ela não grita, nem reclama, vai direta ao Filho e comunica. Ela sabe que providenciar vinho é função do noivo e do encarregado da festa, mas não vai a eles. Ela também não se perturba com a resposta do Filho. Vai aos que foram designados para servir e lhes ordena: “Fazei tudo o que ele vos disser”. Nesta palavra, ela dá um novo rumo para à obediência dos serventes. Eles foram chamados para obedecer ao mestre-sala, mas para resolver a falta de vinho precisam obedecer a Jesus. A solução não está em fazer como sempre se fez. A situação mudou a solução é outra. Maria cultiva o protagonismo e a serenidade. Ela sabe a quem se entregou e se confia inteiramente.
Aliança. A festa, normalmente, durava uma semana. Por isso devia ser bem planejada, considerando o número de participantes. O vinho tinha grande importância para o andamento da festa. Ele garantia a alegria que constituía a graça de festejar. Na verdade, o motivo da festa é a aliança, mas o motor aqui é o vinho. Nesta festa passa-se do vinho histórico para a um sentido simbólico de grande alcance.
Em Cântico dos Cânticos (1,2) o vinho simboliza o amor que gravita entre esposo e esposa, mas segundo o poeta, o amor supera o vinho. “Teus amores são melhores do que o vinho”. Um casamento, no pleno sentido religioso cristão é uma aliança entre duas pessoas. Uma entrega acordada reciprocamente. O noivo se dá à noiva por inteiro e esta ao noivo também por inteira. Aliança não é contrato, nem obrigação, é livre oferenda. Eis o grande desafio na relação de pertença.
Bodas em Caná figura a aliança de Deus com a humanidade, por meio de seu Filho Jesus, presente na história, em condição humana. Maria é a humanidade para Deus, enquanto Jesus é Deus para a humanidade. Maria, aquela que gerou Jesus, agora o impulsiona para superação do vazio da celebração, que é a falta do vinho. O vinho simboliza o amor. Maria está posicionada na origem, na fonte, porque a graça não pode parar de brotar.
Maria é a mãe que vigia e se antecipa à necessidade dos seus. Ela não resolve o problema, mas encaminha certeiramente para quem pode fazê-lo. Só Jesus pode dar um jeito, mas ele não o faz sozinho. A participação de servidoras e servidores é necessária. Contando com a disposição de obedecer ao mandato de Jesus, a humanidade terá uma aliança que nunca se acaba.
A mediadora estabelece e favorece laços de comunhão, de alcance mais amplos que a percepção dos envolvidos no momento, no caso, os serventes e Jesus. A ação conjunta, dos serventes e de Jesus, resulta em benefício de todos os convidados e vai mais além, pois o vinho em abundância (de sobra), quando já boa parte dos convidados está embriagada (cf. Jo 2,10), é para aqueles que ainda não chegaram ou ainda não foram convidados. O vinho novo transborda as gerações.
O serviço realizado transborda da festa do momento presente e abraça o futuro que está em gestação. O vinho das bodas alcança também a nós hoje. Esta geração continua sendo beneficiada por aquele vinho, que nunca haverá de acabar. Quanto aos discípulos, são aqui figurantes, talvez aprendizes.
Quanta reclamação por falta de vocações! Quanta justificativa por falta de entusiasmo! Quanta tempo ocupado para mudar estruturas externas! Quanta omissão para cultivar o espírito! O dia das núpcias era celebrado com muita festa, o vinho não podia faltar. Mas no dia-a-dia da aliança só se persevera com muito amor. É o amor que está em causa, não o fruto da videira. O vinho é símbolo dele.
As talhas. “Estavam lá seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus” (Jo 2,6a). Eram seis, símbolo da carência. Eram de pedra, símbolo da lei antiga, sem flexibilidade. Fazem lembrar a profecia de Ezequiel: “Tirarei de vosso corpo o coração de pedra e porei no lugar um coração de carne” (36,26b). Eram grandes, comportando de 80 a 120 litros. Eram desiguais, umas continham duas medidas, outras continham três. Estavam fixadas em um lugar especifico, a entrada da sala. Estavam determinadas a uma função especifica, a purificação dos judeus. Isto invoca a exigência legal, estabelecida pelas autoridades judaicas.
A função de purificar/limpar não significa mudar, nem converter. João narra esta parte com detalhes para que não restem dúvidas de sua importância na festa que até agora predominava. A purificação, porém, não é suficiente. Ela ameniza, mas não resolve. A conversão é a resposta.
As talhas ocupam exatamente o centro da narrativa. Com a atuação mediadora de Maria e ação transformadora de Jesus, as talhas são deslocadas, começa um novo tempo e uma nova prática. Migramos do poder da talha-continente (lei) para o poder do vinho-conteúdo (amor). Passamos da frieza da lei para o calor do amor. A mãe de Jesus estava lá, atenta e ativa. As talhas de pedra estavam lá, inertes e vazias. Mas não é só isso, estavam lá também, o chefe dos serventes e o noivo que nada perceberam. Maria, com grande ousadia, desloca os serventes da obediência ao seu chefe para a obediência a Jesus. A estrutura montada falhou. Maria agiu. Esse deslocamento deu o que falar.
A Lei, estabelecida para orientar a humanidade, tornou-se obstáculo. Em vez de indicar o caminho, tornou-se, ela própria, a razão do caminho, impedindo a progressão para a plenitude. O último instrumento não são as talhas de pedra, mas o lenho da cruz. As talhas da purificação estão vazias.  Vazio também está o deposito do vinho. Desatento está o chefe dos serventes.  Sem ação estão os encarregados de servir. Este momento exige observação e resposta criativa.
A água, colocada por obediência a Jesus, se converte em vinho, muda então, a qualidade e a função. O vinho, porém, torna-se sangue durante a ceia de Jesus. O sangue, por sua vez, derramado na cruz, possibilita a transformação total da humanidade. Agindo a partir de dentro de cada pessoa, garantindo uma nova humanidade, fiel à aliança, até a plenificação no amor. Não mais purificação, mas plenificação. Por isso se fala de sinal “arché”, isto é, principio.
As palavras de Jesus. São duas as ordens de Jesus aos serventes. A primeira é: “Encham de água essas talhas” (Jo 2,7). Ordem que obteve deles uma recepção generosa, pois encheram até a borda, isto é, até não caber mais. Este ato expressa a generosidade do serviço. A segunda ordem é “tirem e levem ao mestre-sala” (Jo 2,8). Entende-se em geral como levar uma amostra da água. Jesus não faz o que outros podem fazer. Aqui, ele providencia o vinho, mas não o distribui. Diferentemente do que fez com os pães em João 6,11.
O responsável para servir os convidados não tinha ciência nem da falta de vinho, nem do que foi feito e nem de quem fez tal coisa. Ocupado com o ritual não enxerga o manancial. Está ocupado com a tarefa de servir, mas não percebe a necessidade dos destinatários de sua função. Degusta e percebe a mudança de qualidade no vinho apresentado pelos serventes, mas não consegue ir além disso. Pelo contrário, adverte o noivo para uma falha na etiqueta: “servir primeiro o bom vinho e depois servir o pior” (Jo 2,10). Onde Jesus e Maria estiverem presentes não será mais assim.
A ordem de Jesus mostra que, quanto mais se caminha, melhor é a qualidade do caminhar. No desígnio de Deus não se vai do melhor para o pior, como reclama o chefe dos serventes, que já tem prevista a decadência na qualidade da festa, vai-se sim, do pior para o melhor, como revela a ação de Jesus. O plano de Deus segue uma linha ascendente. Com Maria e Jesus a festa é progressivamente qualificada até o fim. Conforme podemos ver no texto, eles não buscam coisas novas, eles qualificam as que existem. Não basta ser ou fazer diferente, é preciso ser e fazer melhor.
O mistério da hora ou a hora do mistério. Jesus responde de modo estranho ao apelo da mãe: “minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4). Mais adiante em 13,1, João esclarece. Trata-se da “Hora de passar deste mundo para o Pai”. É a hora da entrega total de si mesmo, ao Pai, em favor de todos. Assim, o princípio dos sinais (cf. Jo 2,12) aponta para o fim (cf. Jo 19,18). O que o Jesus veio fazer é muito mais que dar vinho, é dar a si mesmo. O exercício da missão esclarecerá.
Resolver uma carência é importante. Mais importante, porém, é exercitar um modo de vida no qual as carências não tenham mais lugar. A mãe intercede pela continuidade da festa. Ela percebe que o vinho está acabando e comunica ao filho. Este, chama atenção para a solução definitiva: doar a vida (cf. Jo 2,4). Quando se prioriza a doação a carência acaba.
Nas bodas, Maria assume e transcende o papel do mestre-sala, buscando a continuidade da festa. Com Jesus, ela inverte a ordem tradicional da festa, passando, ela mesma de convidada a corresponsável. Antes, cada um cuidava do seu lugar, agora começa um processo participativo onde cada pessoa não se limita a sua função especifica. O bem de todos é a meta. Não é suficiente cuidar só do que lhe cabe.
Não é a tradição, mas a criatividade que responde às surpresas da vida e aos novos desafios que se apresentam, com frequência, em nossa caminhada. O novo tempo começou. O que precisa prevalecer não é o costume, mas a justiça. Justiça é cada um contribuir, sem reservas, com o que tem e, receber com gratuidade, o que necessita para viver.
Na cruz, Jesus lhe entrega a continuidade da maternidade do Salvador e, consequentemente, da salvação. De agora em diante, a mãe de Jesus é mãe de todos os discípulos dele, até o fim dos tempos. Do mesmo modo, todos os discípulos dele, são também filhos de Maria, até o fim dos tempos. Mais ainda, com tal entrega, a mãe de Jesus passa a ser mãe de toda a humanidade.
Concluindo, na cruz, a própria missão, Jesus entrega a mãe à humanidade. Ele recebeu a humanidade da mãe, agora entrega-a à humanidade (cf. Jo 19,26). Isto, Jesus fez antes de morrer, mas depois de morto, ainda oferece, de seu lado aberto pela lança, sangue e água (cf. Jo 19,34).
João avisa que a transformação da água em vinho é o princípio dos sinais. O aviso tem duplo sentido. Princípio pode ser visto como origem, mas pode ser visto como o primeiro de muitos. As duas visões se encaixam aqui: O sinal fonte, bem como o sinal de abertura.
Para refletir: 1 - Onde Maria estava que percebeu a falta do vinho antes de todos, inclusive dos responsáveis pela festa? 2 - Em que lugar devo estar eu para não ser pego de surpresa na falta do vinho/amor para com as pessoas com as quais convivo e as que preciso servir? 3 - O que significa hoje para nós esta ordem de Maria: Fazei tudo o que ele vos disser? 4 - Quais são as talhas vazias de nossa instituição e de nossa vida que precisam de uma nova destinação?

Fr. Moacir Casagrande, OFMcap